Serras do Sul

10 anos depois.
Mountain Bike 720km 11240m 8 2 mai 2021

Desde que começamos a fazer viagens de bicicleta, falamos das serras do sul, mas só depois de dez anos pedalando juntos que colocamos o plano em prática. Partimos de Brochier, uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Sul, assim que o sol nasceu, munidos de batatinhas assadas, chocolate e paçoca. Tínhamos poucos dias de folga para fazer a maior quantidade de serras possíveis, passando pela Rota do Sol, Faxinal, Rocinha, Rio do Rastro, Corvo Branco, e outras menos conhecidas, mas tão bonitas e difíceis quanto.

No primeiro dia cruzamos o Vale do Caí todo por estrada de terra, passando por pequenas áreas rurais onde comemos laranjas e bergamotas na estrada, subimos por Morro Reuter numa etapa duríssima do percurso, com inclinações de 18%, cruzamos a BR116 e seguimos pela estradinha até chegarmos em Santa Maria do Herval, com 1.700m de altimetria acumulados. Na primeira busca por abrigo já vimos a paróquia da cidade e desenrolamos com o Pe. Roque, que nos cedeu uma garagem nos fundos, cheia de abóboras, roupas, cacarecos e pelo barulho alguns camundongos. Perfeito para o primeiro dia de viagem, mesmo sem banho. Acordamos bem cedo, passamos o café e organizamos nossas coisas tranquilamente esperando o sol aparecer para fugir do frio. Logo eram 5h30 e o sino começou a tocar.

Nossa rota permaneceu por estrada de terra. Desenhamos ela no Komoot, um aplicativo onde nos permite escolher o percurso por tipo de bicicleta ou terreno, e usar como GPS, o que facilita ir mato a dentro, mas nem sempre é o caminho mais fácil. Saímos de Santa Maria do Herval que está a 380 metros a nível do mar, subimos à 780, para depois descer a 50 metros de altimetria até à cidade de Três Coroas, e por fim chegarmos à São Francisco de Paula localizada a 900 metros de altura. A estrada estava boa até que entramos em uma região mais rural, que provavelmente só trator passe por ali, pois entre galinheiros e plantações tinham muitas pedras soltas e buracos, além do barro decorrente da forte chuva dos dias que antecederam a viagem, então onde os morros e árvores escondem o sol estava difícil mesmo na marcha mais leve.

Começou a girar pesado, acumular barro e mato na roda da bicicleta, até que travou e paramos por uns 30 minutos para limpar os pneus. Passado a lama, uma descida muito legal e rápida até Três Coroas, uma parada para o lanche e um pneu furado, pegamos uma subida difícil com uma parte de paralelepípedo que é caminho do templo budista, até chegarmos no asfalto da RS-020. Nesse trecho mudou bastante, pois com o asfalto vem o trânsito que mesmo subindo a serra passavam muito rápido por nós, e 20 km de subida até chegar em São Francisco de Paula leva um tempo considerável.

Chegando na cidade já procuramos por abrigo e dessa vez ficamos no corpo de bombeiros. Nós levamos uma barraca caso não conseguíssemos abrigo em alguma cidade e tivéssemos que nos proteger do frio ou chuva, mas, na brincadeira ou não, desde o início da viagem a ideia era não precisar abrir ela. Nessa noite ventou muito, trazendo o frio que nos seguiu pelo resto da viagem, foi difícil dormir. Demos sorte deles abrirem as portas para gente, e ainda conversar sobre a rotina deles. Os caras são uns monstros.

Viajar no frio foi uma novidade para nós. Nunca nos colocamos nessas condições, sempre optamos por épocas ou regiões mais quentes, e assim carregando o mínimo possível, quase uma disputa pra quem carrega menos coisas, mas dessa vez enchemos nossas bolsas com muita roupa. Saindo bem cedo vestindo calça, jaqueta e luvas, no trecho até Tainhas eu só pensava no café que tomaríamos antes de mudar de estrada e torcendo pra não perder os dedos. Nisso chegamos na Rota do Sol, paramos rapidamente no mirante e saímos de 920m de altitude para zero em minutos, passando por curvas largas, caminhões e dois túneis pequenos, mas que precisam de iluminação para atravessar.

Ao chegar no plano, logo entramos à esquerda numa região que o Komoot indicou, voltando à estrada de chão, algumas pontes e uma serrinha com poucas casas na volta, passando perto do Poço das Andorinhas. Tivemos outra descida longa pela estradinha de terra perfeita com algumas pedras, parando para comer laranjas e bananas pelo caminho, até chegar em Três Cachoeiras, na beira da BR-101, seguindo para Praia Grande, na divisa com Santa Catarina já no pé da serra, onde chegamos no início da noite. Amanheceu com muitos balões subindo e a Serra do Faxinal ao fundo, tempo aberto, começamos a subir já na marcha mais leve e assim foi por um bom tempo.

Foram 1.400m de altimetria acumulada, chegando a 1.040m acima do nível do mar, e 43 km de estrada até chegar em Cambará do Sul, passando pelas entradas dos cânions. Nós íamos passar no Cânion Fortaleza mas ele é fechado nas terças e decidimos não entrar nos outros. No nosso ritmo fomos vencendo a serra, no meio do mato com uma boa vista lá de cima, onde dava pra ver o litoral ao fundo e identificar algumas cidades. A subida da serra não foi a parte mais difícil, e sim a parte que antecede a cidade, pois estava em manutenção com patrolas revirando a terra e ficou difícil pedalar, até chegar no centro da cidade e ganhar abrigo no salão paroquial da cidade, cozinhar um rango e descansar.

Com outra noite muito fria, fizemos o café da manhã mais demorado da história, postergando a saída. Às 8h marcava zero graus e tinha geada nos campos ao longo da estrada de asfalto até chegar na fábrica de papel, voltando para o mato, passando pontes de madeira, sem trânsito nem pessoas, apenas nós aproveitando o sol em direção à Serra da Rocinha. Ainda antes de descer conseguimos comer pinhão num barzinho no meio do nada e descansar um pouco.

Enquanto pensávamos no percurso, sabíamos que essa serra estava sendo pavimentada e sem fluxo de veículos, mas não tínhamos certeza de como seria com as bicicletas, mas foi perfeito: a obra está na etapa final, apenas dois pequenos pedaços inacabados. Parecia um tobogã de 1.222m a zero, com uma vista linda, curvas fechadas, inclinação de 7,5% e vento forte no rosto durante 20 km, até chegarmos no município de Timbé do Sul e nos abastecer. Evitamos as rodovias sempre que possível, passando por Turvo, Meleiro, até chegar em Nova Veneza, já sem sol. Mesmo com um bom abrigo em outro salão paroquial gigante, banho quente, bem alimentados, e dormindo com todas as roupas possíveis, tive a certeza que precisava trocar de saco de dormir para uma próxima viagem com baixas temperaturas.

Chegado o dia mais esperado da viagem, primeiro fomos até Lauro Müller para conhecer a cidade, visto que normalmente os rolês para subir a Serra do Rio do Rastro partem de lá. Parada rápida numa padoca, e começamos a subir. Logo passamos por um posto policial com placas sinalizando que a serra estava fechada devido a obras, mas não nos preocupamos até chegar a 600m de altitude, onde tinha uma barreira e logo um cara gritou para pararmos.

O trampo do cara era, além de barrar as pessoas, repetir o dia todo para todos os carros que chegavam ali, explicando que as obras de colocar uma tela de proteção por todo o caminho para não cair pedras gigantes na estrada. Pelo humor dele, percebemos que já tinha feito muitas vezes isso. Sem muito o que fazer nessa hora, preocupados começamos a conversar para ele entender que se fossemos subir somente às 18h, quando encerram as perfurações, íamos congelar. Na noite anterior, a temperatura em Bom Jardim da Serra, nosso destino, foi de -8,5°C. Claro que passar pelas obras é arriscado, mas quanto mais próximo chegássemos dela ainda de dia, melhor.

Depois de 2h de papo furado, demos tchau para o amigo e passamos a barreira, afinal não tinha como ele amarrar a gente. Pedalamos com a estrada toda nossa, curtindo o sol passando pela serra, até chegar um carro com o responsável pela obra. O tal português que nos falaram na barreira chegou gritando com a gente, mas depois de muita choradeira, sim senhor, desculpa, não senhor, ele nos deixou subir até onde começava a obra de fato.

Nesse meio tempo subimos mais 500m e paramos na reta final da serra, de costas para a parte mais íngreme e sinuosa, e com uma vista brutal do pedaço que já tínhamos feito. Sem muito o que fazer e a fome apertando, cozinhamos uma lentilha com miojo e um pedaço de pão na beira da estrada, seguido de um café para enganar o frio. Nisso apareceu um quati que nos acompanhou por um tempo. Sorte que só apareceu um e não o bando todo, pois o bicho lazarento queria mexer em tudo, entrar nas bolsas e panela. Foram mais 2h esperando, até que um pouco antes do horário o pessoal começou a recolher o maquinário e voltamos a subir aos poucos. No caminho, algumas pedras que caíram durante o dia e que certamente causariam um acidente grave caso caísse em alguém. Curva a curva, na marcha mais leve, ninguém pelo caminho e na euforia de finalmente fazer algo que falávamos a tanto tempo, chegamos no topo (1421m) nos últimos raios de sol.

Perfeito, missão cumprida com louvor, mas faltava alguns quilômetros para chegar na cidade e o frio estava apertando. Corremos muito na descida até encontrar o corpo de bombeiros da cidade, que nos ajudaram a conseguir abrigo num centro de idoso que estava vazio, com cozinha, cobertas, um aquecedor e banho de caneca. Mesmo Bom Jardim da Serra sendo uma das cidades mais frias do país, dormimos muito bem e bastante comparado aos outros dias.

Renovados seguimos pela rodovia, e na sequência entramos na SC-110, até chegar em Urubici. Nesse trecho teve bastante sobe e desce, algumas com curvas bem sinuosas, bom asfalto e montanhas ao fundo. Um pouco antes de chegar na cidade, uma placa caseira indicando o ponto de rodovia mais alto do sul do Brasil, com 1570m, e imediatamente despencamos durante 11 km, passando para 918m de altitude. A descida foi bem rápida, com uma curva muito fechada no mirante, quase passei reto. Na manhã seguinte, paramos numa padaria e por acaso conhecemos o autor da placa no alto da rodovia e conversamos sobre os percursos e trekings da cidade.

Com neblina no início do dia, o sol apareceu prestes a voltarmos para terra no início da Serra do Corvo Branco. Subida pesada mas curta até chegar na fenda, o maior corte em rocha do Brasil, a 1.150m de altitude, feito para ligar o litoral às serras. Do outro lado, a vista é muito bonita, e já deu pra ter ideia de como seria bom e difícil descer. Estrada de terra com pedras, curvas muito fechadas e íngremes, beirando penhascos, estreita e difícil para carros se cruzarem e pequenos caminhões subirem. Bom para testar os freios da bicicleta. Passada a montanha russa, a rodovia volta a ser asfaltada, onde seguimos até Grão-Pará, ponto conhecido por quem faz esse percurso, para comer algo e descansar um pouco. Ainda passamos por Braço do Norte, Orleans e finalizamos em Urussanga, numa casinha que pegamos no alto de uma montanha, gastando as últimas energias e potássio da semana antes de sermos resgatados.