Porto Alegre - Montevideo
Conhecendo a Estrada do Inferno. A viagem sem volta.Em novembro de 2017, após a viagem com a Hardbrakers de São Paulo até Rio De Janeiro, definitivamente precisava de um pouco de descanso. Convidei meu amigo Gianfranco a conhecer o extremo sul do Brasil e o litoral Uruguaio. Saímos de São Paulo numa carona de carro em direção ao sul do país. Em 24 horas percorrendo 1300 quilômetros, chegamos até a capital gaúcha, Porto Alegre.


A viagem tinha como destino sugerido a capital uruguaia Montevideo, mas o caminho até lá estava aberto à deriva. A princípio, especulava uma tripinha de terra que divide a maior laguna da América do Sul, a Lagoa dos Patos, e o Oceano Atlântico, caminho que leva até o Chuí, a última fronteira do Brasil.

Passamos um par de dias em Porto Alegre, desfrutando dos dias quentes e das noites intermináveis com os velhos sempre novos amigos. Na última noite antes da véspera de Natal na esquina do Eski bar, conversava com o Camilo sobre a viagem.
Até então sempre que falava desse trajeto com quem conhecia essa região ouvia sempre algo como “é muito monótono”, ”retas intermináveis”,”não tem nada”, ”vá de ônibus até o Chuí e comece direto no Uruguai”. Camilo com forte entusiasmo disse “A ESTRADA DO INFERNO”. Contou que em sua viagem por essa estrada também com destino ao país uruguaio, quase não chegou ao Uruguai. Disse que ao contrário do que todos diziam, encontraríamos paisagens deslumbrantes, aves e animais de diferentes espécies, e que a monotonia da estrada era a magia do caminho. Minha sensibilidade estava em pico, e acreditava que a única forma de algo dar errado durante a viagem, seria ignorar o poder dos sinais. Sem mais questionamentos, eu e Gianfranco já tínhamos a decisão.
Fizemos os últimos ajustes com cordas e fitas amarrando nossas malas em bagageiros improvisados de última hora. Nas mochilas, algumas roupas, uma barraca, kit de cozinha, e ferramentas para manutenção básica.

Na manhã de natal saímos de Porto Alegre pela cidade de Viamão, percorremos o trecho da RS-040 até Capivari do Sul, onde demos inicio a Estrada do Inferno ou o último trecho da BR-101. Nesse primeiro dia, tivemos uma prévia de como seria o clima nos demais dias: seco, e muito, muito calor. Terminamos o dia na Lagoa do Bacopari, também conhecida como a Lagoa Azul. Ela costeia uma imensidão de dunas, de areia fina, fofa e branca, em certos pontos movediça. Um cantinho paradisíaco a poucos quilômetros da capital.
O Bacopari fica a uns 5km da estrada, e o caminho até lá é um paralelepípedo bem desregular, levaria muito tempo para percorrer empurrando a bicicleta. Então, antes mesmo do sol nascer, nos levantamos e organizamos tudo pra sair. Pra nossa sorte, ao sair da pousada conseguimos uma carona na caçamba de uma caminhonete até a beira da estrada, o que nos poupou horas de sol forte.

O vento nos soprou até Mostardas, município do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, onde é conhecida por ser abrigo para grandes concentrações de aves migratórias do Hemisfério Norte e Sul. Fizemos ali nossa parada pro almoço, e íamos descobrindo uma culinária saborosa, simples e honesta, assim como o carinho e receptividade das pessoas. Após o almoço tiramos um cochilo em uma praça debaixo das árvores, sentindo a brisa que bate sem parar na região, e acordamos com alguns curiosos nos espiando. Esse grupo de amigos, nos questionou o porquê de escolhermos viajar de bicicleta, e mais ainda o porquê daquela região, “a cidade esquecida”. Nos despedimos e seguimos viagem. Chegamos no fim da tarde no município de Tavares e fomos direto em busca de uma farmácia, a essa altura, Gianfranco já tinha sofrido sérias queimaduras por conta do sol. Comemos um XIS e nos abrigamos em um quartinho nos fundos da casa da Dona Cecília.

Saímos de Tavares junto ao sol, as paisagens iam ficando cada vez mais bonitas. Com o olhar em direção ao mar, se vê pequenos lagos com dunas ao fundo, a diversidade de aves era enorme, muitas sobre a água, outras sob nossas cabeças cruzando de um lado para o outro da pista enquanto pedalávamos. Do nosso lado direito, uma plantação enorme de pinos separava a gente da Lagoa dos Patos. Esse é o ponto mais curto entre a estrada e a lagoa.

Depois de poucos quilômetros rodados, paramos na entrada de uma fazenda, um corredor de areia entre a enorme plantação de pinos, impossível de pedalar com nossos pneus fininhos. Caminhamos empurrando nossas bicicletas, até chegar a propriedade do Vô Tarsio, onde encontramos a Dona Ana e sua filha Márcia, que nos receberam como se fossemos da família, estenderam as redes debaixo das árvores centenárias que cercam o quiosque de madeira, e enquanto descansávamos, sentíamos o cheiro da lenha queimando o fogão. Uma das melhores comidas que já comi, me levou a uma tarde inesquecível de prosa, fazendo daquele momento uma amizade pra vida.

No fim da tarde seguimos até o distrito do Bojuru, com a indicação da Márcia, nos hospedamos em frente ao bar do Luiz Mortola. Nossa estadia foi curta por lá, debaixo da mesa de sinuca estendemos nossos colchões e acordamos com a família Mortola prontos com o café servido a mesa, fortalecendo nosso dia.


Seguimos viagem em direção a São José do Norte, ou “do Norte” como as pessoas da região falam, chegando ao fim da Estrada do Inferno. Nos deparamos com uma cidade antiga, com um enorme fluxo de caminhões, devido à balsa que faz a ligação com a cidade de Rio Grande. A cidade cheia de pescadores, repleta de barcos que se parecem com barcos piratas; bares e casas noturnas cercam a baía onde ficam ancorados. Pegamos a balsa que fez nossa travessia até Rio Grande, uma cidade portuária, e a maior da região. Ali no mesmo município, fica a maior praia do mundo, a Praia do Cassino, onde fomos passar a noite.
Saindo do Cassino, no largo da Quinta, paramos em uma placa que informava: Próximo posto à 100km. Neste momento o primeiro pneu furado da viagem, no reparo/na adrenalina/na loucura, estragamos três das quatro câmaras reservas. Colocamos a última que tínhamos, e seguimos pela BR-471 em direção a Reserva Do Taim, e se achávamos que até então estávamos próximos ao nível do mar, percebemos que nos enganamos quando chegamos às únicas duas retas que nos levariam até o Chuí.
O sol do meio dia era escaldante e os únicos refúgios de sombra eram pontos de ônibus. A essa hora já não tínhamos mais água. Percorremos mais alguns quilômetros em direção a Praia da Capilha, onde planejávamos passar aquela noite.
Paramos em uma vilinha e batemos em frente a casa do Luis Fernando, que nos recebeu com água gelada armazenada em caixas de leite e pedimos pra passar um tempo debaixo da sombra em frente a sua casa até o sol abaixar. Mal sabíamos que esse tempinho ali nos custaria a noite toda. Ao nos levantar para sair da casa do Luis Fernando, mais uma vez o pneu se encontrava furado, e desta vez não tínhamos mais câmara reserva, e nosso kit de remendo estava vencido.
Sem opção, em meio ao Taim, peguei um ônibus até Rio Grande no mesmo dia e voltei até a bicicletaria que havíamos passado no dia anterior. Sem sucesso, encontrei a loja fechada, e tive que me abrigar no hotel mais barato da cidade para concluir a missão da câmara de ar no dia seguinte.

Logo cedo, antes mesmo da bicicletaria abrir, eu já estava na porta e consegui as câmaras. Peguei uma carona no terminal rodoviário, e voltei até o Taim encontrar com o Gianfranco. Consertamos o pneu e seguimos viagem.
Nesse ponto da estrada, já não se via tantos caminhões e carros, eram apenas nós dois, imersos naquele horizonte. Ainda na manhã cruzamos a Estação Ecológica do Taim, vimos vacas e cavalos selvagens correndo livres sobre um espelho d’água que cobria os banhados. Capivaras, jacarés e centenas de aves completavam aquele cenário de tirar o fôlego.


Aproveitando o vento ao nosso favor que nos empurrava cada vez mais forte, decidimos compensar o dia parado, e rodamos cerca de 200Km, ou seja, um dia inteiro de pedal, num sol escaldante, que passou das nossas costas à ponta dos nossos pés. Essa região é completamente descampada, repleta de geradores eólicos, as árvores que avistávamos eram muito distantes, e quase não conseguimos sombra para descansar. Quando o sol nos deu um alívio conseguimos acelerar o passo até o posto mais próximo do munícipio de Santa Vitória do Palmar. Descansamos por poucos minutos em um posto à 10 Km da cidade e a luz do dia que já ia embora, trouxe a noite para a gente percorrer os últimos quilômetros. Tivemos dificuldade em encontrar um local que aceitasse a quantidade de dinheiro que estávamos dispostos a pagar, e só conseguimos cama e banho por volta da meia noite.

Acordamos na manhã do dia 31 e saímos em direção ao Chuí, última fronteira do Brasil com Uruguai. Ainda na companhia dos geradores eólicos que pareciam não ter fim, chegamos no Chuí. A cidade é separada apenas por uma longa avenida com um canteiro central. No lado brasileiro, a Avenida Uruguai e no lado uruguaio, a Avenida Brasil. Centenas de freeshops por todos os cantos, uma cidade hostil pelo grande número de turistas e comércios. Mesmo assim, deixamos nossa contribuição: compramos uma bela garrafa de champagne para comemorarmos o reveillon e mais uma fronteira cruzada.
Amarrei a garrafa no bagageiro e segui sacudindo-a pelos próximos quilômetros. Logo após passarmos pela polícia de imigração, já no lado uruguaio, o vento que antes nos empurrava a favor, veio contra nós, e a estrada plana parecia uma eterna subida. Nesse trecho o movimento de carros era grande devido ao feriado e de repente, a rodovia de duas faixas triplica de tamanho e se torna uma pista emergencial para aviões, pra nossa surpresa. Um pouco mais a frente avistamos um ponto de informações turísticas, aparentemente desativado. Paramos ali, e já que não podíamos escolher a direção do vento, a melhor coisa foi ter decidido dormir e esperar o sol abaixar. Quando acordamos, o forte vento continuava, mas já era fim de tarde. O sol se punha nessa época por volta das 20h, com tempo suficiente para chegarmos ainda com claridade na comuna de Valizas, munícipio de Rocha. Voltando à estrada, a planície foi trocada por um sobe e desce até a entrada de Valizas. Deixamos nossa bagagem e bicicletas no camping, e fomos pra rua comemorar o réveillon.

Valizas é uma comunidade de 200 habitantes, organizada por todos que vivem ali, tem uma peculiaridade sem igual, construções irregulares, placas e sinalizações feitas a mão, tudo muito colorido. Meia noite, fernet cola na mão, embaixo de chuva, voltando pro camping, paramos em um bar onde acontecia uma festa, e ali encontramos por acaso nossos amigos da Pedal Express de Porto Alegre. O encontro, somado à fortes tragos, fez o tempo linear perder o sentido em volta da fogueira naquela noite.

No dia seguinte acordamos e fomos até Cabo Polonio, cidade vizinha que se esconde atrás de 8 quilômetros de dunas. O pequeno rio que cruzamos saindo de Valizas nos refrescou durante o começo da caminhada, que seguiu abaixo de forte sol. Assim que chegamos, vimos a semelhança entre ambos os lugares. Rua de terra, casas coloridas, pessoas indo de lá pra cá e um grande farol perto do mar. Passamos a tarde andando, e vimos o pôr do sol na praia voltada ao Sul. Cruzamos pra praia na parte Norte, onde nos deparamos com uma quantidade enorme de lobos e leões marinhos. Neste lado de Cabo Polonio, as casas são completamente brancas, tão brancas que parecem ser grandes quadrados de sal, espalhados por um gramado verde.

O calor do sol que recém baixava, se tornou em um forte vento vindo do mar, e nele vimos a lua nascer laranja em sua forma mais cheia. Deitamos embaixo de um barco na praia e acabamos caindo no sono. Acordamos algumas horas depois com o vento frio, levantamos a procura de um lugar melhor para passarmos a noite. Encontramos um bar fechado, que parecia perfeito, havia um lugar escuro entre alguns bancos e uma divisória de palha, que nos protegia do vento. Durou pouco, algum tempo depois de deitar nos despertamos com vozes ao nosso redor, e naqueles bancos vazios, agora haviam pessoas conversando, bebendo e fumando. Havia começado uma festa no bar. A festa nos acordou e dançamos até sermos consumidos pelo sono e o cansaço do dia.

Assim que vimos o sol clareando seguimos até a praia e voltamos às dunas que ligavam à comuna de Valizas. Fazia um dos maiores frios que eu e Gianfranco já sentimos. De chinelos, shorts e jaquetas corta vento, seguimos no frio, até que o sol surgisse ali onde recém havia subido a luz. O calor do dia começou e deitamos mais um pouco ali nas dunas, dormindo por mais algumas horas.

Voltamos para Valizas, montamos nossas bicicletas, e por volta das 12h nos despedimos de todos e seguimos pedalando. A estrada que segue ao sul de Valizas é perfeita: asfalto bom, muita vegetação em volta da pista e paisagens lindas. Passamos por La Pedrera e terminamos nosso dia procurando um lugar pra dormir em La Paloma, depois de quase 60 quilômetros pedalados.
Na manhã seguinte seguimos sentido Montevideo. Saímos com mais um dia lindo de sol nos acompanhando, as estradas se tornaram mais movimentadas assim que chegamos às vias principais. O sobe e desce nos levava em direção a uma grande nuvem que estava no céu.

E do céu azul começaram a cair as primeiras gotas de chuva transformando a estrada em um espelho d'água, os carros que passavam nos banhavam, e após uma onda vinda de um caminhão, decidimos esperar em um ponto de ônibus, desta vez para se esconder da chuva e não do sol. Esperamos por ali a passagem da nuvem, e assim que a chuva parou entramos na estrada secundária que surgia logo a frente, por ela cortarmos o caminho da estrada principal até a região de Punta del Este. Foram 30 quilômetros de terra batida. Era um sobe e desce em direção ao mar, onde ou acelerávamos ou sentíamos nossas bicicletas afundarem na terra. A estrada terminava em um condomínio de luxo. Na bifurcação, seguimos a direita e, mais uma vez, uma linha reta em direção sul, mais alguns quilômetros daquela estrada que nos chacoalhava tanto que impedia o diálogo. Quando vimos o asfalto chegando, comemoramos, e o esforço que fazíamos na terra, ali se tornou quase nulo. O mar começou a nos acompanhar à nossa esquerda e na nossa frente, só víamos nuvens cinzas.

Entramos na região de José Ignacio, que antecede Maldonado e Punta del Este. O dia foi se tornando cinza enquanto entrávamos nas nuvens que cobriam todo o céu. O trânsito começou a surgir, e a vegetação à nossa volta foi se tornando uma sequência de casas cafonas. O sol começou a baixar no horizonte e o víamos indo embora entre as nuvens escuras. Junto com o vento e o frio, paramos, nos abrigamos e ligamos nossas luzes para conseguir ver e ser vistos. A noite chegou e junto dela o cansaço. Completamente molhados, já entrávamos no perímetro urbano. Punta del Este estava cada vez mais próxima e o trânsito de carros já era intenso. Postos de gasolina repletos de carros de luxo nos mostravam que estávamos entrando em um lugar muito diferente dos quais vimos durante a viagem.
Paramos em um mercado 24 horas na via na altura de La Barra. Corri pra dentro do mercado e busquei uma cerveja, que dividimos enquanto discutimos o que seria daquela noite. Em frente ao mercado era uma área de convivência, com um telhado que cobria alguns bancos e mesas. Decidimos nos abrigar ali mesmo. Compramos duas garrafas do vinho mais barato da prateleira, “Brisas del Este”, que nos aqueceu até que conseguíssemos pegar no sono. Revezamos o saco de dormir e o turno para cuidar das bicicletas.

Saímos do mercado, o comércio começava a aparecer e vimos muitos jovens voltando das festas pedindo carona à beira da estrada. Cruzamos por muitos carros esportivos, casas e condomínios de luxo. Saímos de Punta com a sensação de que estávamos em uma cidade como Miami, ou algo do tipo.
Faltava 130 quilômetros para chegarmos em Montevideo, nosso último destino, e diferente dos primeiros dias de viagem, estávamos inteiros, nos sentindo mais vivos do que nunca, o que facilitou nosso trajeto. Seguimos direto pela Ruta Interbalnearia, proibida para bicicletas. Era o caminho mais curto, e o mantivemos o dia todo. Já na região metropolitana de Montevideo, nos sentimos como se estivéssemos entrando na cidade de São Paulo. Muitos conjuntos habitacionais, comércios, ônibus e um trânsito estressante. Levamos quase 2 horas pedalando até o centro da cidade.

Como de costume, paramos em um bar que acabava de abrir as portas, pedimos a maior e mais barata cerveja, e brindamos o início de uma viagem que apenas começava.